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Histórias Reais

Os 505 anos do rio São Francisco, comemorados hoje, 4 de outubro, ganham reportagens especiais que serão publicadas durante todo o dia de hoje, por meio do site da Codevasf. A série de reportagens começa com as lavadeiras do "Velho Chico".
publicado: 04/10/2006 10h53, última modificação: 01/11/2022 14h09

As lavadeiras do São Francisco

A história de mulheres simples que construíram cultura, amizades e criaram famílias com o trabalho no "Velho Chico"

Tiago Severino

Colaborador

Antes mesmo de o sol despontar no horizonte, Diolice Feitosa de Sá, levanta da cama, arruma a trouxa e vai para o rio. Dazinha, como é conhecida, escolhe a melhor pedra, que depois de lavada sirva para estender a roupa. Prepara o sabão, pede proteção aos céus e começa a trabalhar. Durante 43 anos, ela percorreu o trecho que liga a sua casa no Bairro Santo Antônio, em Pirapora (MG), até a cachoeira do rio São Francisco.

Ela iniciou na atividade aos 17 anos e foi componente de um grupo de 35 mulheres, conhecida como as Lavadeiras do São Francisco. Graças ao dinheiro que ganhou, conseguiu criar todos os setes filhos. Hoje, com 60 anos, trocou o trabalho no rio pela Lavanderia Comunitária Aparecida. "Apesar do carinho que temos pelo ‘Velho Chico’, aqui na lavanderia podemos ficar na sombra e não corremos o risco de perder as roupas que lavamos", afirma Dazinha.

Assim como ela, o grupo substituiu gradativamente a atuação no rio pelo trabalho em casa, em lavanderias ou mudaram de atividade profissional. Os principais motivos da decadência da profissão foram o surgimento das máquinas de lavar, tanques elétricos e a obrigatoriedade da emprega doméstica em realizar também esta função.

A coordenadora da Lavanderia Aparecida, Jane Borges da Silva, diz que das 10 mulheres que integram a associação, três são remanescentes do rio. No local, existem 20 tanques e mesas de mármores - para passar a roupa. O dinheiro arrecado é dividido, o que gera R$ 150 para cada uma. A Prefeitura contribui com o custo da água e da luz.

"Aquilo que ganhávamos antigamente servia apenas para sobreviver", comenta Laurita Barbosa, conhecida como Lita. Ela trabalhou no rio durante 10 anos. Segundo Lita, se fossem trabalhar em casa, naquela época, o custo da água ficaria muito alto. Por isso, utilizavam o São Francisco.

Coral do Rio

Além de aproveitar os recursos existentes, o Rio da Unidade Nacional também, tornou-se para elas um local de encontro e bate papo. Para passar o tempo e amenizar o impacto do trabalho, as lavadeiras cantavam versos de criação própria. O preferido do grupo era: "menina da saia verde que não te deu fui eu. Porque eu não te dei pegou a saia e vendeu". Os versos simples ganham vida, quando a ex-lavadeira com uma voz tranqüila liga cada palavra, por meio de uma musicalidade que lembra os sambas antigos.

Juntas formavam um grande coral que era possível ser escutado da beira do rio. As cantigas se uniam ao som da cachoeira. Tudo se tornava uma melodia que variava entre a nostalgia das rimas e o retrato bucólico das corredeiras, das praias e da vida que se levava. Os locais mais procurados pelas mulheres ficavam nas ilhas antes da Ponte Marechal Hermes e na cachoeira. Não havia posição determinada para cada pessoa. Aquelas que chegassem mais cedo poderiam ficar com as pedras - pontos melhores para estender a roupa, durante a secagem. As outras deveriam pegar capim para fazer uma cobertura no solo, onde poderiam esperar a água escorrer. Não havia disputa ou brigas pelos melhores locais. Pelo contrário, desenvolveu-se um espírito comunitário, baseado na fraternidade.

Indiferente pela distância, os dois locais tinham as mesmas características sociais, ou seja, composto por mulheres de baixa-renda; o serviço era essencial para as despesas familiares; quase todas já tinham filhos e possuíam raízes nordestinas - grande parte com origem baiana.

Ana Rodrigues Araújo mora em Pirapora há 60 anos. Natural da cidade de Morro do Pará (BA), ela foi lavadeira sanfranciscana por 40 anos. Ana explica que era difícil uma mulher de outra região, com pouco ou nenhum estudo conseguir um emprego que possibilitasse colaborar de maneira significativa com as despesas da família. Segundo ela, o campo de trabalho como doméstica estava saturado. Trabalhar no rio era a única solução.

"O serviço era de matar. A gente carregava trouxas de roupas grandes e pesadas. Para lavar tudo direitinho, esfregávamos uma vez a peça, batíamos na pedra, colocávamos para quarar, esfregávamos de novo e depois a roupa ia para o sol secar", conta Ana. O esforço resultou em mãos calejadas e problemas na coluna. "Mesmo assim, consegui criar todos os meus cinco filhos com honestidade, graças ao meu trabalho", argumenta. Ela acredita que a limpeza da roupa resultava-se do modo cuidadoso que se lavava.